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terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Pina Bausch
(1940-2009): o método e o amor
"NÃO ME INTERESSO EM COMO AS PESSOAS SE MOVEM, MAS  O QUE AS MOVEM" 

uma das mais importantes e influentes coreógrafas do século XX, criadora da linguagem chamada "teatro-dança". O ensaio reconstrói o percurso e o processo de trabalho da companhia de Pina Bausch, o Tanztheater Wuppertal, na Alemanha, desde os primórdios nos anos 1970 até a criação da peça brasileira, Água, de 2001.  o método de pesquisa da artista, sobre as subjetividades de seus bailarinos, e aborda o esgarçamento das fronteiras geográficas de seu trabalho, "a partir da utilização de elementos de culturas diversas, numa verdadeira ambição de criar com sua dança-teatro uma linguagem universal". Daí a origem das peças inspiradas e produzidas em diversas cidades do mundo, como Viktor (Roma, 1986), Nefés (Istambul, 2003), Ten chi (Saitama, Japão, 2004) Rough cut (Seul, Coreia, 2005), entre outras. Tendo acompanhado o processo criativo dos bailarinos e da coreógrafa no Brasil, o autor conclui que "a relação entre o erudito e o popular é a base da forma de observação de Bausch, uma artista interessada na gente das ruas, nas manifestações com raízes populares"

                                                                                                   




Em 1982, algum tempo antes de Dezembro, no estúdio de Wuppertal onde concebia as suas obras, é certo que Pina Bausch se sentou com os seus colaboradores e bailarinos e lhes perguntou: digam ou façam ”qualquer coisa sobre o primeiro amor”; “como imaginavam o amor quando eram crianças?”; “duas frases sobre o amor”; “como imaginam o amor?”; “se alguém vos quer obrigar a fazer amor, como reagem?”; destas questões saíram os gestos, movimentos, cenas, situações, narrativas ou micronarrativas de Nelken, como de muitas outras questões nasceram muitas outras obras.

Trata-se, ou tratava-se, como se sabe, do método de trabalho criativo coreográfico de Pina Bausch. Para cada obra, tinha a autora um sortido de palavras, palavras soltas, que depois se combinavam em expressões, questões, frases – por exemplo, se se partia da palavra “ternura”, podia-se ir parar à necessidade de “seres terno contigo mesmo”, e daí para uma sucessão de ocorrências que geravam uma obra de teatro ou de dança ou de teatro-dança.

Todas as obras de Pina Bausch assim começavam: na relação entre questões e improvisação, das questões e a partir das questões, era necessário fazer dezenas, centenas, milhares (como a autora referia) de perguntas aos bailarinos, era, consequentemente, necessário em absoluto ficar suspenso naquele impressivo fio da navalha e naquela angústia de estar “dependente” dos outros para fazer nascer a obra própria, os movimentos despegados da coesão clássica do próprio movimento (e da sua narratividade), chegar à história para aportar ao fragmento. Ora, a angústia resultava do facto de, “por vezes, não sair nada”. Inevitavelmente.
Nunca é pois demais sublinhar que em Bausch a palavra antecedia o movimento, a conversa, o diálogo, aquela estranha comunhão autoral colectiva (sim, porque não?), antecedia a decisão autoral individual que aproximava, quando aproximava, a obra daqueilo que ainda, apesar de tudo se chamava “Dança” (e note-se que todos os seus bailarinos tinham – têm – rigorosa formação clássica). Este método é interessantíssimo no actual contexto da produção e da valorização, digamos, capitalista, pois daqui não só poderia sair “nada” (uma “improdução” absoluta e estética), como, a sair, saía muito lentamente, Bausch falava sempre do tempo largo que necessitava para criar (juntamente com os “seus”). Temos, portanto, primeiro o nada, depois o fragmento, depois a pergunta, a resposta, a frase e a arte de uma cerzideira de restos ou “totalidades” que embatiam noutras “totalidades” sem formar UMA “totalidade”.
É aqui extremamente interessante também ler relatos de alguns bailarinos(as) de formação clássica que precisavam de trabalhar o corpo em exercícios regulares técnicos e, em vez disso, tinham de se sujeitar a estes jogos de perguntas/respostas ou, acima de tudo, creio-o bem, sessões de contenção corporal, de, como diria Alain Badiou noutro contexto, gestos de “negação da obediência imediata a impulsos”. A dança era uma espécie de negação de si mesma, isto se entendêssemos a dança como a arte de “obedecer ao impulso”, que aqui era banida, pois tratava-se antes de “guardar”, “esperar”, habitar o tempo sem limite de tempo (se fosse caso disso).
Maurice Nadeau, em 1958, falava do surrealismo como de um cruzamento entre o maravilhoso, o inconsciente, o sonho e a loucura, e os estados alucinatórios. Será este o contexto da obra de Pina Bausch? Muitos ligam-na ao surrealismo, outros ao dadaísmo, outros a ambos (oRoutledge Companion to Theatre and Performance), recordando não apenas o contexto da dança expressionista, mas também autores como Alfred Jarry ou Artaud.
Por mim, recordo-me de me ter “zangado” com este universo ao ver, pela primeira vez (depois de ter visto várias peças), a obra Viktor, realizada a partir de uma estadia em Roma (que inauguraria uma série de obras que resultavam das famosas relações entre a companhia de Bausch e cidades em particular, por onde passaria também Lisboa, na obra Mazurca Fogo). Porque vi ali um registo de pessimismo e de incomunicabilidade que se me afigurava demasiado insistente. Mas, pouco depois, li correctamente tudo ao contrário, e, em Café Müller, de 1978, tornara-se claro que um dos temas da autora era o amor. Neste lúgubre café há um inesquecível “encontro” entre o bailarino eleito de Bausch, Dominique Mercy, e uma mulher: ela sobe para o colo de Mercy, abraça-o, ele aparentemente nada faz (apesar de ser “ensinado” por um terceiro) e ela cai ao chão – tudo se repete infinitas vezes. Pode não parecer, mas Mercy é o paradigma ou símbolo do amor, nesta situação aflitiva. Porque o amor não é um contrato fechado, completo e pelo menos desde S. Paulo sabemos que só o ser incompleto pode amar. Mercy, assim, nunca se “completa” com a mulher que se lança infindas vezes aos seus braços – por isso, o infinito pode repetir-se até ao infinito. É este o retrato da infinitude e da imperfeição do amor.


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