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sábado, 8 de julho de 2017

Diego Velázquez


AS Meninas por Michel Foucault. 




Óleo sobre tela 1659,  318 x 276 cm


Apesar da grande quantidade de escritores de qualquer gênero que buscaram uma significação definitiva, enquanto não apareça documentação concludente devemos admitir que nenhuma interpretação individual poderá dar resposta aos problemas implicados em As Meninas. Vários historiadores opinam que, como boa obra barroca, esconde vários mensagens. 
Aqui segue uma das informações, encontradas na Wikiwand: 

Ordem de Santiago
A Ordem Militar de Santiago é uma ordem religiosa-militar de origem castelhano-leonesa, atualmente Ibérica instituída por Afonso VIII de Castela e aprovada pelo Papa Alexandre III, mediante uma bula outorgada em 5 de Julho de 1175. Tornando-a assim uma ordem supranacional, directamente responsável perante o chefe máximo da Cristandade.


Texto de Michel Foucault publicado no blog https://territoriosdefilosofia.wordpress.com/2014/11/14/las-meninas-michel-foucault/:



O pintor está ligeiramente afastado do quadro. Lança um olhar em 

direção ao modelo; talvez se trate de acrescentar um último toque, mas é 

possível também que o primeiro traço não tenha ainda sido aplicado. 

braço que segura o pincel está dobrado para a esquerda, na direção da 

palheta; perma­nece imóvel, por um instante, entre a tela e as cores. 

Essa mão hábil está pendente do olhar; e o olhar, em troca, repousa sobre 

o gesto suspenso. Entre a fina ponta do pincel e o gume do olhar, 

o espetáculo vai liberar seu volume.

Não sem um sistema sutil de evasivas. Distanciando-se um pouco, 
o pintor colocou-se ao lado da obra na qual traba­lha. Isso quer dizer que. 
para o espectador que no momento olha, ele está à direita de seu quadro, 
o qual ocupa toda a ex­tremidade esquerda. A esse mesmo espectador o quadro 
vol­ta as costas: dele só se pode perceber o reverso, com a imensa armação que 
o sustenta. O pintor, em contrapartida, é perfei­tamente visível em toda a sua 
estatura; de todo modo, ele não está encoberto pela alta tela que, talvez, irá 
absorvê-lo logo em seguida, quando, dando um passo em sua direção, se 
en­tregará novamente a seu trabalho; sem dúvida, nesse mesmo instante, ele 
acaba de aparecer aos olhos do espectador, sur­gindo dessa espécie de grande 
gaiola virtual que a superfície que ele está pintando projeta para trás. Podemos 
vê-lo agora, num instante de pausa, no centro neutro dessa oscilação. Seu talhe 
escuro, seu rosto claro são meios-termos entre o visível e o invisível: saindo 
dessa tela que nos escapa, ele emerge aos nossos olhos; mas quando, dentro 
em pouco, der um passo pa­ra a direita, furtando-se aos nossos olhares, achar-se-á 
colo­cado bem em face da tela que está pintando; entrará nessa re­gião onde seu 
quadro, negligenciado por um instante, se lhe vai tornar de novo visível, sem 
sombra nem reticência. Como se o pintor não pudesse ser ao mesmo tempo 
visto no quadro em que está representado e ver aquele em que se aplica a 
re­presentar alguma coisa. Ele reina no limiar dessas duas visibilidades 
incompatíveis.
O pintor olha, o rosto ligeiramente virado e a cabeça in­clinada para o ombro. 
Fixa um ponto invisível, mas que nós, espectadores, podemos facilmente 
determinar, pois que esse ponto somos nós mesmos: nosso corpo, nosso rosto, 
nossos olhos. O espetáculo que ele observa é, portanto, duas vezes invisível: 
uma vez que não é representado no espaço do qua­dro e uma vez que se situa 
precisamente nesse ponto cego, nesse esconderijo essencial onde nosso olhar se
furta a nós mesmos no momento em que olhamos. E, no entanto, como poderíamos 
deixar de ver essa invisibilidade, que está aí sob nossos olhos, já que ela tem 
no próprio quadro seu sensível equivalente, sua figura selada? Poder-se-ia, 
com efeito, adi­vinhar o que o pintor olha, se fosse possível lançar os olhos sobre
 a tela a que se aplica; desta, porém, só se distingue a textura, os esteios na 
horizontal e, na vertical, o oblíquo do cavalete. O alto retângulo monótono que
 ocupa toda a parte esquerda do quadro real e que figura o verso da tela 
repre­sentada reconstituiu, sob as espécies de uma superfície, a invisibilidade 
em profundidade daquilo que o artista contem­pla: este espaço em que nós 
estamos, que nós somos. Dos olhos do pintor até aquilo que ele olha, está
traçada uma linha imperiosa que nós, os que olhamos, não poderíamos evi­tar: 
ela atravessa o quadro real e alcança, à frente da sua su­perfície, o lugar de 
onde vemos o pintor que nos observa; esse pontilhado nos atinge 
infalivelmente e nos liga à representa­ção do quadro.
Aparentemente, esse lugar é simples; constitui-se de pu­ra reciprocidade: 
olhamos um quadro de onde um pintor, por sua vez, nos contempla. 
Nada mais que um face-a-face, olhos que se surpreendem, olhares retos que, 
em se cruzando, se su­perpõem. E, no entanto, essa tênue linha de visibilidade 
en­volve, em troca, toda uma rede complexa de incertezas, de trocas e de 
evasivas. O pintor só dirige os olhos para nós na medida em que nos 
encontramos no lugar do seu motivo. Nós, espectadores, estamos em excesso. 
Acolhidos sob esse olhar, somos por ele expulsos, substituídos por aquilo que 
desde sempre se encontrava lá, antes de nós: o próprio modelo. Mas, 
inversamente, o olhar do pintor, dirigido para fora do quadro, ao vazio que lhe 
faz face, aceita tantos modelos quantos es­pectadores lhe apareçam; nesse lugar 
preciso mas indiferen­te, o que olha e o que é olhado permutam-se 
incessantemente. Nenhum olhar é estável, ou antes, no sulco neutro do olhar 
que traspassa a tela perpendicularmente, o sujeito e o objeto, o espectador e o 
modelo invertem seu papel ao infinito. E, na extremidade esquerda do quadro, 
a grande tela virada exerce aí sua segunda função: obstinadamente invisível, 
impede que seja alguma vez determinável ou definitivamente estabele­cida a 
relação dos olhares. A fixidez opaca que ela faz reinar num lado torna para 
sempre instável o jogo das metamorfo­ses que, no centro, se estabelece entre o 
espectador e o mo­delo. Porque só vemos esse reverso, não sabemos quem 
so­mos nem o que fazemos. Somos vistos ou vemos? O pintor fixa atualmente 
um lugar que, de instante a instante, não ces­sa de mudar de conteúdo, de forma,
 de rosto, de identidade. Mas a imobilidade atenta de seus olhos remete a uma 
outra direção, que eles já seguiram freqüentes vezes e que breve, sem dúvida 
alguma, vão retomar: a da tela imóvel sobre a qual se traça, está talvez traçado, 
desde muito tempo e para sem­pre, um retrato que jamais se apagará. 
De sorte que o olhar soberano do pintor comanda um triângulo virtual, que 
defi­ne em seu percurso esse quadro de um quadro: no vértice — único ponto 
visível — os olhos do artista; na base, de um la­do, o lugar invisível do modelo,
 do outro, a figura provavel­mente esboçada na tela virada.
No momento em que colocam o espectador no campo de seu olhar, os olhos 
do pintor captam-no, constrangem-no a en­trar no quadro, designam-lhe um 
lugar ao mesmo tempo pri­vilegiado e obrigatório, apropriam-se de sua 
luminosa e vi­sível espécie e a projetam sobre a superfície inacessível da tela 
virada. Ele vê sua invisibilidade tornada visível ao pintor e transposta em 
uma imagem definitivamente invisível a ele próprio. Surpresa que é 
multiplicada e tornada ainda mais ine­vitável por um estratagema marginal. 
Na extremidade direi­ta, o quadro recebe sua luz de uma janela representada 
segun­do uma perspectiva muito curta; dela apenas se visualiza o vão; de sorte 
que o fluxo de luz que ela espalha largamente banha ao mesmo tempo, com a 
mesma generosidade, dois es­paços vizinhos, entrecruzados, mas irredutíveis: 
a superfície da tela, com o volume que ela representa (isto é, o ateliê do pin­tor, 
ou a sala em que instalou seu cavalete), e, à frente dessa superfície, o volume 
real que o espectador ocupa (ou então o lugar irreal do modelo). 
E, percorrendo a sala da direita para a esquerda, a vasta luz dourada impele 
ao mesmo tempo o espectador em direção ao pintor e o modelo em direção 
à te­la; é ela também que, iluminando o pintor, torna-o visível ao espectador e 
faz brilhar como linhas de ouro, aos olhos do mo­delo, a moldura da tela 
enigmática, onde sua imagem, trans­posta, vai se achar encerrada. Esta janela 
encantoada, parcial, apenas indicada, libera uma luz inteira e mista que serve 
de lugar-comum à representação. Ela equilibra, na outra extre­midade do 
quadro, a tela invisível: assim como esta, virando as costas aos espectadores, 
se redobra contra o quadro que a representa e forma, pela superposição de 
seu reverso visível sobre a superfície do quadro que a contém, o lugar, para 
nós inacessível, onde cintila a Imagem por excelência; assim a ja­nela, pura 
abertura, instaura um espaço tão manifesto quan­to o outro é oculto; tão comum
 ao pintor, às personagens, aos modelos, aos espectadores quanto o outro é 
solitário (pois nin­guém o olha, nem mesmo o pintor). Da direita, derrama-se 
por uma janela invisível o puro volume de uma luz que torna vi­sível toda 
representação; à esquerda, estende-se a superfície que encobre, do outro lado 
de sua textura demasiado visível, a representação que ela contém. Inundando a 
cena (quero di­zer, tanto a sala quanto a tela, a sala representada na tela e a sala 
onde a tela está colocada), a luz envolve as personagens e os espectadores, 
impelindo-os, sob o olhar do pintor, em di­reção ao lugar onde seu pincel os vai 
representar. Esse lugar, porém, nos é recusado. Olhamo-nos olhados pelo 
pintor e tor­nados visíveis aos seus olhos pela mesma luz que no-lo faz ver. 
E, no momento em que vamos nos apreender transcritos por sua mão como 
num espelho, deste não podemos surpreen­der mais que o insípido reverso. 
O outro lado de um reflexo.
Ora, exatamente em face dos espectadores — de nós mes­mos — sobre a parede
 que constitui o fundo da sala, o autor re­presentou uma série de quadros; e eis 
que, entre todas essas telas suspensas, uma dentre elas brilha com um clarão 
singu­lar. Sua moldura é mais larga, mais sombria que a das ou­tras; uma fina 
linha branca, no entanto, a duplica interior­mente, difundindo sobre toda a sua 
superfície uma luz difi­cilmente determinável; pois não vem de parte alguma 
senão de um espaço que lhe seria interior. Nessa luz estranha apare­cem duas 
silhuetas e, acima delas, um pouco para trás, uma pesada cortina de púrpura. 
Os outros quadros só dão a ver al­gumas manchas mais pálidas no limite de 
uma noite sem profundeza. Esse, ao contrário, abre-se para um espaço em 
recuo onde formas reconhecíveis se dispõem numa clarida­de que só a ele 
pertence. Entre todos esses elementos desti­nados a oferecer representações, 
mas que as contestam, as recusam, as esquivam por sua posição ou sua 
distância, esse é o único que funciona com toda a honestidade e que dá a ver o 
que deve mostrar. A despeito de seu distanciamento, a des­peito da sombra que 
o envolve. Mas não é um quadro: é um espelho. Ele oferece enfim esse 
encantamento do duplo, que tanto as pinturas afastadas quanto a luz do 
primeiro plano com a tela irônica recusavam.
De todas as representações que o quadro representa, ele é a única visível; mas 
ninguém o olha. Em pé ao lado de sua tela, a atenção toda absorvida pelo seu 
modelo, o pintor não pode ver esse espelho que brilha suavemente atrás dele. 
As outras personagens do quadro estão, na maioria, voltadas tam­bém elas para 
o que se deve passar à frente — para a clara invisibilidade que margeia a tela, 
para esse átrio de luz, onde seus olhares têm para ver aqueles que os vêem, e não para es­sa cavidade 
sombria pela qual se fecha o quarto onde estão re­presentadas. Há, com efeito, 
algumas cabeças que se ofere­cem de perfil: nenhuma, porém, suficientemente 
virada para olhar, no fundo da sala, esse espelho desolado, pequeno retângulo 
brilhante que nada mais é senão visibilidade, mas sem nenhum olhar capaz de 
apossar-se dela, torná-la atual e comprazer-se no fruto, subitamente amadurecido, de seu es­petáculo.
É preciso reconhecer que essa indiferença só se iguala à do espelho. Com 
efeito, este nada reflete daquilo que se en­contra no mesmo espaço que ele: nem
 o pintor, que lhe volta as costas, nem as personagens no centro da sala. Em sua
 cla­ra profundidade, não é o visível que ele fita. Na pintura ho­landesa, era 
tradição que os espelhos desempenhassem um papel de reduplicação: 
repetiam o que era dado uma primei­ra vez no quadro, mas no interior de um espaço irreal, modi­ficado, 
estreitado, recurvo. Ali se via a mesma coisa que na primeira instância do 
quadro, porém decomposta e recom­posta segundo uma outra lei. Aqui o 
espelho nada diz do que já foi dito. Sua posição, entretanto, é quase central: 
sua bor­da superior está exatamente sobre a linha que reparte em duas a altura 
do quadro, ocupa sobre a parede do fundo (ao menos sobre a parte visível 
desta) uma posição mediana; deveria, pois, ser atravessado pelas mesmas linhas 
perspectivas que o próprio quadro; poder-se-ia esperar que um mesmo ateliê, 
um mesmo pintor, uma mesma tela nele se dispusessem segundo um espaço 
idêntico; poderia ser o duplo perfeito.
Ora, ele não faz ver nada do que o próprio quadro re­presenta. Seu olhar imóvel 
vai captar à frente do quadro, nes­sa região necessariamente invisível que forma 
sua face exte­rior, as personagens que ali estão dispostas. Em vez de girar em 
torno de objetos visíveis, esse espelho atravessa todo o campo da representação,
negligenciando o que aí poderia cap­tar, e restitui a visibilidade ao que 
permanece fora de todo olhar. Mas essa invisibilidade que ele supera não é a do 
oculto: não contorna o obstáculo, não desvia a perspectiva, endere­ça-se ao que 
é invisível ao mesmo tempo pela estrutura do quadro e por sua existência como 
pintura. O que nele se re­flete é o que todas as personagens da tela estão fixando,
 o olhar reto diante delas; é, pois, o que se poderia ver, se a tela se prolongasse 
para a frente, indo mais para baixo, até en­volver as personagens que servem de 
modelos ao pintor. Mas é também, já que a tela se interrompe ali, dando a ver o 
pintor e seu ateliê, o que está exterior ao quadro, na medida em que ele é quadro
, isto é, fragmento retangular de linhas e cores, encarregado de representar 
alguma coisa aos olhos de todo espectador possível. No fundo da sala, ignorado 
por to­dos, o espelho inesperado faz brilhar as figuras que o pintor olha (o pintor 
e sua realidade representada, objetiva, de pin­tor trabalhando); mas também as 
figuras que olham o pintor (nessa realidade material que as linhas e as cores 
deposita­ram sobre a tela). Estas figuras são, uma e outra, igualmente 
inacessíveis, mas de modo diferente: a primeira, por um efei­to de composição 
que é próprio ao quadro; a segunda, pela lei que preside à existência mesma de 
todo quadro em geral. Aqui, o jogo da representação consiste em conduzir essas 
duas formas de invisibilidade uma ao lugar da outra, numa super­posição 
instável — e em restituí-las logo à outra extremidade do quadro — a esse pólo 
que é o mais altamente representado: o de uma profundidade de reflexo na 
reentrância de uma pro­fundidade de quadro. O espelho assegura uma metátese 
da vi­sibilidade que incide ao mesmo tempo sobre o espaço repre­sentado no 
quadro e sua natureza de representação; faz ver, no centro da tela, aquilo que, 
do quadro, é duas vezes necessaria­mente invisível.

Estranha maneira de aplicar ao pé da letra, mas invertendo-o, o conselho que o 
velho Pachero dera, ao que parece, ao seu aluno, quando trabalhava no ateliê de 
Sevilha: “A ima­gem deve sair da moldura.”
II
Mas talvez seja tempo de nomear enfim essa imagem que aparece no fundo do 
espelho e que o pintor contempla à frente do quadro. Talvez valha a pena fixar 
de vez a identi­dade das personagens presentes ou indicadas, para não nos 
atrapalharmos infinitamente nestas designações flutuantes, um pouco abstratas, 
sempre suscetíveis de equívocos e de des­dobramentos: “o pintor”, “as personagens”, 
“os espectado­res”, “as imagens”.       Em vez de prosseguir sem fim 
numa lin­guagem fatalmente inadequada ao visível, bastaria dizer que Velásquez 
compôs um quadro; que nesse quadro ele se repre­sentou a si mesmo no seu 
ateliê, ou num salão do Escoriai, a pintar duas personagens que a infanta 
Margarida vem con­templar, rodeada de aias, de damas de honor, de cortesãos e 
de anões; que a esse grupo pode-se muito precisamente atri­buir nomes: a 
tradição reconhece aqui dona Maria Agustina Sarmiente, ali, Nieto, no primeiro 
plano, Nicolaso Pertusato, bufão italiano. Bastaria acrescentar que as duas 
personagens que servem de modelo ao pintor não são visíveis, ao menos 
diretamente; mas que podemos distingui-las num espelho; que se trata, sem 
dúvida, do rei Filipe IV e de sua esposa Mariana.
Esses nomes próprios constituiriam indícios úteis, evi­tariam designações 
ambíguas; eles nos diriam, em todo o caso, o que o pintor olha e, com ele, 
a maioria das personagens do quadro. Mas a relação da linguagem com a 
pintura é uma re­lação infinita. Não que a palavra seja imperfeita e esteja, em 
face do visível, num déficit que em vão se esforçaria por re­cuperar. São 
irredutíveis uma ao outro: por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se 
aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por 
imagens, me­táforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele 
que os olhos descortinam, mas aquele que as suces­sões da sintaxe definem. 
Ora, o nome próprio, nesse jogo, não passa de um artifício: permite mostrar 
com o dedo, quer dizer, fazer passar sub-repticiamente do espaço onde se fala 
para o espaço onde se olha, isto é, ajustá-los comodamente um sobre o outro 
como se fossem adequados. Mas, se se qui­ser manter aberta a relação entre a 
linguagem e o visível, se se quiser falar não de encontro a, mas a partir de sua 
incom­patibilidade, de maneira que se permaneça o mais próximo possível de 
uma e de outro, é preciso então pôr de parte os nomes próprios e meter-se no 
infinito da tarefa. É, talvez, por intermédio dessa linguagem nebulosa, 
anônima, sempre meticulosa e repetitiva, porque demasiado ampla, que a 
pin­tura, pouco a pouco, acenderá suas luzes.
É preciso, pois, fingir não saber quem se refletirá no fundo do espelho e 
interrogar esse reflexo ao nível de sua existência.
De início, ele é o verso da grande tela representada à es­querda. O verso ou, 
antes, a face dianteira, pois que mostra de frente o que ela, por sua posição, 
esconde. Ademais, opõe-se à janela e a reforça. Como ela, é um lugar-comum 
ao qua­dro e ao que lhe é exterior. A janela, porém, opera pelo mo­vimento 
contínuo de uma efusão que, da direita para a esquer­da, agrega às personagens 
atentas, ao pintor, ao quadro, o espetáculo que contemplam; já o espelho, por 
um movimento violento, instantâneo e de pura surpresa, vai buscar, à fren­te do 
quadro, aquilo que é olhado mas não visível, a fim de, no extremo da 
profundidade fictícia, torná-lo visível mas indi­ferente a todos os olhares. 
O pontilhado imperioso que está traçado entre o reflexo e o que ele reflete 
corta perpendicu­larmente o fluxo lateral da luz. Enfim — e é a terceira função 
desse espelho — ele põe em paralelo uma porta que, como ele, se abre na 
parede do fundo. Também ela recorta um retângulo claro, cuja luz fosca não 
se irradia pela sala. Não passaria de uma placa dourada, não estivesse ela 
aberta para fora atra­vés de um batente esculpido, da curva de uma cortina e 
da sombra de vários degraus. Aí começa um corredor; mas, em vez de se 
perder em meio à obscuridade, ele se dissipa num brilho amarelo, cuja luz, 
sem entrar, rodopia em torno de si mesma e repousa. Sobre esse fundo, ao 
mesmo tempo próxi­mo e sem limite, um homem destaca sua alta silhueta; ele é 
visto de perfil; com uma das mãos retém o peso de um corti­nado; seus pés estão
pousados sobre dois degraus diferentes; tem o joelho dobrado. Talvez vá entrar 
na sala; talvez se limi­te a espiar o que se passa no interior, contente de 
surpreender sem ser observado. Tal como o espelho, fixa o verso da cena: tanto 
quanto ao espelho, ninguém lhe presta atenção. Não se sabe donde vem; pode-se 
supor que, seguindo por incertos cor­redores, contornou a sala onde as 
personagens estão reunidas e onde trabalha o pintor; talvez estivesse, há pouco,
 também ele à frente da cena, na região invisível que é contemplada por todos 
os olhos do quadro. Como as imagens que se distinguem no fundo do espelho, 
é possível que ele seja um emissário des­se espaço evidente e escondido. Há, 
no entanto, uma diferen­ça: ele está ali em carne e osso; surgiu de fora, no 
limiar da área representada; ele é indubitável — não um reflexo provável, mas 
uma irrupção. O espelho, fazendo ver, para além mesmo dos muros do ateliê, 
o que se passa à frente do quadro, faz oscilar, na sua dimensão sagital, o 
interior e o exterior. Com um pé sobre o degrau e o corpo inteiramente de 
perfil, o visitante ambíguo entra e sai ao mesmo tempo, num balan­cear imóvel. 
Ele repete, sem sair do lugar, mas na realidade sombria de seu corpo, o 
movimento instantâneo das imagens que atravessam a sala, penetram no 
espelho, nele se refletem e dele ressaltam como espécies visíveis, novas e 
idênticas. Pá­lidas, minúsculas, essas silhuetas no espelho são recusadas pe­la 
alta e sólida estatura do homem que surge no vão da porta.
Cumpre, no entanto, retornar do fundo do quadro em di­reção à frente da cena; 
é preciso abandonar esse circuito cuja voluta se acaba de percorrer. Partindo do 
olhar do pintor que, à esquerda, constitui como que um centro deslocado, 
distin­gue-se primeiro o reverso da tela, depois os quadros expostos, com o 
espelho no centro, a seguir a porta aberta, novos qua­dros, cuja perspectiva, 
porém, muito aguda, só deixa ver as molduras em sua densidade, enfim, à 
extremidade direita a janela, ou, antes, a fenda por onde se derrama a luz. Essa 
con­cha em hélice oferece todo o ciclo da representação: o olhar, a palheta e o 
pincel, a tela inocente de signos (são os instru­mentos materiais da representação),
os quadros, os reflexos, o homem real (a representação acabada, mas como 
que libe­rada de seus conteúdos ilusórios ou verdadeiros que lhe são 
justapostos); depois, a representação se dilui: só se vêem as molduras e essa 
luz que, do exterior, banha os quadros, os quais, contudo, devem em troca 
reconstituir à sua própria ma­neira, como se ela viesse de outro lugar, 
atravessando suas molduras de madeira escura. E essa luz, vemo-la, com 
efeito, no quadro, parecendo emergir no interstício da moldura; e de lá ela 
alcança a fronte, as faces, os olhos, o olhar do pintor que segura numa das 
mãos a palheta e, na outra, o fino pincel… Assim se fecha a voluta, ou melhor, por essa luz, ela se abre.
Essa abertura não é mais, como no fundo, uma porta que se abriu; é a própria 
amplitude do quadro, e os olhares que por ela passam não são de um visitante 
longínquo. O friso que ocupa o primeiro e o segundo planos do quadro 
representa — se se incluir o pintor — oito personagens. Cinco delas, a cabe­ça 
mais ou menos inclinada, virada ou abaixada, olham na di­reção perpendicular 
do quadro. O centro do grupo é ocupa­do pela pequena infanta, com seu amplo 
vestido cinza e rosa. A princesa vira a cabeça para a direita do quadro, 
enquanto seu busto e os grandes folhos do vestido pendem ligeiramente para 
a esquerda; o olhar, porém, dirige-se aprumado na dire­ção do espectador que 
se acha em face do quadro. Uma linha mediana que dividisse a tela em duas 
alas iguais passaria en­tre os dois olhos da criança. Seu rosto está a um terço 
da al­tura total do quadro. De sorte que aí reside, sem dúvida, o tema principal 
da composição; aí, o objeto mesmo dessa pintura. Como que para prová-lo e 
melhor sublinhá-lo, o autor recor­reu a uma figura tradicional: ao lado da 
personagem princi­pal, colocou outra, ajoelhada, que a olha. Como um 
ofertante em prece, como o Anjo saudando a Virgem, uma governan­ta de 
joelhos estende as mãos para a princesa. Seu rosto se recorta num perfil 
perfeito. Está à altura do da criança. A aia olha para a princesa e só para ela. 
Um pouco mais à direita, outra dama de honor, voltada também para a infanta, 
ligeira­mente inclinada acima dela, mas com os olhos claramente di­rigidos para 
a frente, lá onde já olham o pintor e a princesa. Enfim, dois grupos de duas 
personagens: um, em recuo; outro, composto de anões, no primeiro plano. 
Em cada par, uma per­sonagem olha em frente, a outra à direita ou à esquerda. 
Por sua posição e por sua proporção, esses dois grupos se correspon­dem e se 
emparelham: atrás, os cortesãos (a mulher, à esquer­da, olha para a direita); à 
frente, os anões (o rapaz que está na extremidade direita olha para o interior 
do quadro). Esse con­junto de personagens assim dispostas pode constituir, 
confor­me a atenção que se dê ao quadro ou o centro de referência que se 
escolha, duas figuras. Uma seria um grande X; no pon­to superior esquerdo 
estaria o olhar do pintor e, à direita, o do cortesão; na ponta inferior, do lado 
esquerdo, está o canto da tela representada de costas (mais exatamente, o pé 
do cavalete); do lado direito, o anão (com o calçado deposto sobre o dorso do 
cão). No cruzamento dessas duas linhas, no centro do X, o olhar da infanta. 
A outra figura seria antes a de uma vasta curva; suas duas pontas seriam 
determinadas pelo pin­tor à esquerda e pelo cortesão à direita — extremidades 
altas e recuadas; o recôncavo, bem mais aproximado, coincidiria com o rosto 
da princesa e com o olhar que a aia lhe dirige. Essa tênue linha desenha uma 
concha que, ao mesmo tempo, en­cerra e libera, no meio do quadro, a localização do espelho.
Há, pois, dois centros que podem organizar o quadro, conforme a atenção do 
espectador divague e se prenda aqui ou ali. A princesa mantém-se de pé no 
meio de uma cruz de Santo André, que gira em torno dela com o turbilhão dos 
cor­tesãos, damas de honor, animais e bufões. Mas essa rotação é fixa. Fixa 
por um espetáculo que seria absolutamente invi­sível se essas mesmas 
personagens, subitamente imóveis, não oferecessem, como que no vão de uma 
taça, a possibilidade de olhar no fundo de um espelho, o dúplice imprevisto de 
sua contemplação. No sentido da profundidade, a princesa se superpõe ao 
espelho; no da altura, é o reflexo que se super­põe ao rosto. Mas a perspectiva 
os torna muito próximos um do outro. Ora, cada um deles emana uma linha 
inevitável; uma, saída do espelho, transpõe toda a espessura representada 
(e mesmo além dela, já que o espelho perfura a parede do fun­do e faz nascer 
atrás dela um outro espaço); a outra é mais curta; vem do olhar da criança e só 
atravessa o primeiro pla­no. Essas duas linhas sagitais são convergentes, 
segundo um ângulo muito agudo, e o ponto de seu encontro, saindo da te­la, se 
fixa à frente do quadro, mais ou menos lá de onde o olha­mos. Ponto duvidoso, 
pois que não o vemos; ponto, porém, inevitável e perfeitamente definido, pois 
que é prescrito por essas duas figuras mestras e confirmado ainda por outros 
pontilhados adjacentes que nascem do quadro e que também de­le escapam.
Que há, enfim, nesse lugar perfeitamente inacessível, porquanto exterior ao 
quadro, mas prescrito por todas as li­nhas de sua composição? Que espetáculo é 
esse, quem são esses rostos que se refletem primeiro no fundo das pupilas da 
infanta, depois dos cortesãos e do pintor e, finalmente, na claridade longínqua 
do espelho? Mas a questão logo se des­dobra: o rosto que o espelho reflete é 
igualmente aquele que o contempla; o que todas as personagens do quadro 
olham são também as personagens a cujos olhos elas são oferecidas co­mo 
uma cena a contemplar; o quadro como um todo olha a cena para a qual ele é, 
por sua vez, uma cena. Pura reciproci­dade que manifesta o espelho que olha e 
é olhado, e cujos dois momentos são desprendidos nos dois ângulos do quadro: 
à esquerda a tela virada, pela qual o ponto exterior se torna pu­ro espetáculo; à 
direita o cão estirado, único elemento do qua­dro que não olha nem se mexe, 
porque ele, com seus fortes relevos e a luz que brinca em seus pelos sedosos, só é feito para ser um 
objeto a ser olhado.
O primeiro olhar lançado ao quadro nos ensinou de que é constituído esse 
espetáculo-de-olhares. São os soberanos. Adivinhamo-los já no olhar respeitoso 
da assistência, no es­panto da criança e dos anões. Reconhecemo-los, no fundo 
do quadro, nas duas pequenas silhuetas que o espelho reflete. Em meio a todos 
esses rostos atentos, a todos esses corpos ornamentados, eles são a mais pálida, 
a mais irreal, a mais comprometida de todas as imagens; um movimento, um 
pou­co de luz bastariam para fazê-los desvanecer-se. De todas as personagens 
representadas, elas são também as mais despre­zadas, pois ninguém presta 
atenção a esse reflexo que se esgueira por trás de todo o mundo e se introduz 
silenciosamen­te por um espaço insuspeitado; na medida em que são visíveis, 
são a forma mais frágil e mais distante de toda realidade. In­versamente, na 
medida em que, residindo no exterior do qua­dro, se retiraram para uma 
invisibilidade essencial, ordenam em torno delas toda a representação; é diante 
delas que as coi­sas estão, é para elas que se voltam, é a seus olhos que se mos­tra 
a princesa em seu vestido de festa; da tela virada à infanta e desta ao anão que 
brinca na extremidade direita, desenha-se uma curva (ou então, abre-se o 
braço inferior do X) para ordenar em relação a eles toda a disposição do 
quadro e fa­zer aparecer, assim, o verdadeiro centro da composição, ao qual o 
olhar da infanta e a imagem no espelho estão finalmen­te submetidos.
Esse centro é simbolicamente soberano na sua particu­laridade histórica, já que é
 ocupado pelo rei Filipe IV e sua esposa. Mas, sobretudo, ele o é pela tríplice 
função que ocupa em relação ao quadro. Nele vêm superpor-se exatamente o 
olhar do modelo no momento em que é pintado, o do espec­tador que 
contempla a cena e o do pintor no momento em que compõe seu quadro 
(não o que é representado, mas o que está diante de nós e do qual falamos). 
Essas três funções “olhantes” confundem-se em um ponto exterior ao quadro: 
isto é, ideal em relação ao que é representado, mas perfeitamente real, 
porquanto é a partir dele que se torna possível a representa­ção; nessa realidade 
mesma, ele não pode deixar de ser invi­sível. E, contudo, essa realidade é 
projetada no interior do quadro — projetada e difratada em três figuras que 
corres­pondem às três funções desse ponto ideal e real. São elas: à esquerda, 
o pintor com sua palheta na mão (auto-retrato do autor do quadro); à direita o 
visitante, com um pé sobre o de­grau, prestes a entrar na sala; ele capta ao 
revés toda a cena, mas vê de frente o par real, que é o próprio espetáculo; no 
centro, enfim, o reflexo do rei e da rainha, ornamentados, imó­veis, na atitude de pacientes modelos.
Tal reflexo mostra ingenuamente, e na sombra, aquilo que todos olham no 
primeiro plano. Restitui, como que por encanto, o que falta a cada olhar: ao do 
pintor, o modelo que é recopiado no quadro pelo seu duplo representado; ao do 
rei, seu retrato que se completa nesse lado da tela que ele não po­de distinguir do 
lugar em que está; ao do espectador, o centro real da cena, cujo lugar ele 
assumiu como que por intrusão. Mas talvez essa generosidade do espelho seja 
simulada; tal­vez esconda tanto ou mais do que manifesta. O lugar onde impera o 
rei com sua esposa é também o do artista e o do espectador: no fundo do 
espelho poderiam aparecer — deve­riam aparecer — o rosto anônimo do 
transeunte e o de Velásquez. Pois a função desse reflexo é atrair para o interior 
do quadro o que lhe é intimamente estranho: o olhar que o orga­nizou e aquele 
para o qual ele se desdobra. Mas, por estarem presentes no quadro, à direita e 
à esquerda, o artista e o visi­tante não podem estar alojados no espelho: do 
mesmo modo o rei aparece no fundo do espelho, na medida mesma em que não faz parte do quadro.
Na grande voluta que percorria o perímetro do ateliê, des­de o olhar do pintor, 
sua palheta e sua mão suspensa, até os quadros terminados, a representação 
nascia, completava-se para se desfazer novamente na luz; o ciclo era perfeito. 
Em contrapartida, as linhas que atravessam a profundidade do qua­dro são 
incompletas; falta, a todas, uma parte de seu trajeto. Essa lacuna é devida à 
ausência do rei — ausência que é um artifício do pintor. Mas esse artifício 
recobre e designa um lu­gar vago que é imediato: o do pintor e do espectador 
quando olham ou compõem o quadro. É que, nesse quadro talvez, co­mo em 
toda representação de que ele é, por assim dizer, a es­sência manifestada, a 
invisibilidade profunda do que se vê é solidária com a invisibilidade daquele 
que vê — malgrado os espelhos, os reflexos, as imitações, os retratos. Em 
torno da cena estão depositados os signos e as formas sucessivas da 
representação; mas a dupla relação da representação com o modelo e com o 
soberano, com o autor e com aquele a quem ela é dada em oferenda, essa 
relação é necessariamente in­terrompida. Ela jamais pode estar toda presente, 
ainda quan­do numa representação que se desse a si própria em espetá­culo. Na profundidade que 
atravessa a tela, que a escava ficticiamente e a projeta para a frente dela 
própria, não é possível que a pura felicidade da imagem ofereça alguma vez, 
em ple­na luz, o mestre que 
representa e o soberano representado.
Talvez haja, neste quadro de Velásquez, como que a re­presentação da 
representação clássica e a definição do espa­ço que ela abre. Com efeito, ela 
intenta representar-se a si mes­ma em todos os seus elementos, com suas 
magens, os olha­res aos quais ela se oferece, os rostos que torna visíveis, os 
gestos que a fazem nascer. Mas aí, nessa dispersão que ela reú­ne e exibe em 
conjunto, por todas as partes um vazio essen­cial é imperiosamente 
indicado: o desaparecimento necessá­rio daquilo que a funda — daquele a 
quem ela se assemelha e daquele a cujos olhos ela não passa de semelhança. 
Esse sujei­to mesmo — que é o mesmo — foi elidido. E livre, enfim, des­sa 
relação que a acorrentava, a representação pode se dar co­mo pura representação.

  autoretrato

*Publicado em: FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: 
Martins Fontes, 1999.
**Tradução de Salma Tannus Muchail.